BRASÍLIA — As medidas tomadas pelo governo para abrir o mercado de transporte rodoviário de passageiros geraram reação das empresas do setor, que advertem para uma paralisação de linhas de ônibus estaduais e interestaduais no país. Um decreto presidencial e uma resolução da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) foram editados nas últimas semanas com o objetivo de abrir o mercado e aumentar a oferta de linhas. As empresas foram ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra as normas.

O governo quer desregulamentar o setor, considerado altamente concentrado, para reduzir preços, ampliar rotas e atrair novos players. As empresas tradicionais, porém, afirmam que cidades deixarão de ser atendidas em razão da nova regulamentação.

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O sistema de transporte rodoviário de passageiros passou por mudanças legais nos últimos anos. Até 2014, funcionava por meio de permissão, precedida de licitação. Havia ainda o conceito de vagas para rotas, o que garantiu exclusividade em vários trechos, limitou a entrada de concorrentes no setor, mas assegurava que cidades pequenas fossem atendidas pelo transporte rodoviário de passageiros.

Ainda em 2014, foi criado o regime de autorização, mas que só agora passará a ter efeitos práticos para o setor, depois das publicações do decreto e da resolução da ANTT. O modelo será muito parecido com o transporte aéreo. Qualquer empresa terá direito de pedir qualquer rota, sem exigência de atender cidades menores, por exemplo, mas também sem controle de preços e com potencial de aumentar a concorrência.

Redução de tarifas

O decreto e a deliberação da ANTT estabeleceram a livre concorrência, a liberdade de preços, de itinerário, frequência e redução do custo regulatório. Os textos também determinam que não haverá limite no número de autorizações para o serviço regular de transporte rodoviário, exceto na hipótese de inviabilidade operacional.

A agência diz que não poderá mais fixar as tarifas e os critérios de reajuste e que a concorrência beneficiará o passageiro. “Isso vai chegar ao consumidor com o possível aumento de número de operadores nos mercados que possuem pouca ou nenhuma concorrência, com uma potencial redução tarifária, bem como o aumento de oferta de serviços, por meio da delegação de mercados novos”, destacou o órgão.

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Técnicos envolvidos nas discussões afirmam que as mudanças estariam no mesmo sentido do novo marco regulatório de saneamento, da política de estímulo à cabotagem, da abertura do mercado de gás natural e da ampliação do capital estrangeiro na aviação, entre outras.

“A abertura de mercado permitirá a entrada de novos operadores no mercado, ampliando a oferta e a competição entre as empresas, impulsionando investimentos e possibilitando mais qualidade e preços mais módicos para os usuários do serviço de transporte interestadual de passageiros”, acrescentou o órgão. Atualmente, cerca de 230 empresas regulares atuam no setor, com 12 mil veículos.

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O consultor em transportes e engenheiro Sergio Ejzenberg considera legítima a preocupação com um eventual apagão do setor, mas avalia que isso pode ser resolvido com os novos aplicativos de transporte e outras soluções do próprio mercado.

— É necessário rever o setor, no sentido de cuidar melhor do interesse do usuário. Todo setor que opera com custos elevados para o usuário acaba em algum momento implodindo. Isso está acontecendo com ônibus intermunicipais e interestaduais. Existe uma indicação de que o sistema precisa ser oxigenado, e mais bem gerido — disse.

Empresas tradicionais advertem que cidades deixarão de ser atendidas, pois não haveria interesse em regiões que não dão lucro. Pelas estimativas da Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros (Abrati), 90% das cidades da Região Norte e em 60% do Nordeste, fora as capitais, deixarão de contar com transporte de ônibus.

‘Direito à livre locomoção’

O argumento é que, com a abertura das linhas, as empresas que hoje operam em cidades menores passariam a concentrar suas rotas apenas em trechos atrativos.

— Hoje, os operadores atuam em determinadas linhas. Algumas deficitárias. O equilíbrio entre o bom e o ruim permite a universalidade do serviço. Esse equilíbrio contratual não está contemplado nas novas regras. Muitas cidades não vão ser interessantes nem para os novos entrantes e nem para os que já operam — disse Leticia Pineschi, conselheira da Abrati.

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Marcus Quintella, coordenador da FGV Transportes, disse que a abertura do mercado é positiva, mas o governo precisará encontrar solução para cidades que podem deixar de ser atendidas:

— O livre mercado é importante, a competição é importante, para quebrar esse oligopólio que existe e até uma cartelização de rotas bem definidas e divididas. Por outro lado, tem o lado social que tem que ser solucionado, que são os corredores menos atraentes, que poderão ser desguarnecidos.

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A Associação Nacional das Empresas de Transporte Rodoviário de Passageiros (Anatrip) recorreu ao STF para derrubar o decreto presidencial e a resolução da ANTT. Para a entidade, os dispositivos promoveram profundas mudanças na estrutura dos serviços de transporte “em detrimento da garantia constitucional do direito fundamental à livre locomoção e do direito social ao transporte”. O Supremo não tem data para julgar o tema.

Para Mauricio Lima, sócio da consultoria em logística Ilos, a abertura de mercado é sempre bem-vinda, desde que as regras sejam claras.

— A insegurança jurídica, se houver, freia investimentos. Se o governo faz a abertura do mercado sem olhar os contratos atuais, não se consegue abrir novas linhas, e o que acontece é que as empresas antigas freiam investimentos e as novas não vão operar — afirmou.

Referência: https://oglobo.globo.com/economia/governo-abre-mercado-de-onibus-empresas-dizem-que-cidades-podem-ficar-sem-linhas-vao-ao-stf-24160329